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Teletrabalho – Convivência da figura com notários e registradores à luz das normas trabalhistas e da regulamentação administrativa promovida pelo CNJ
A figura jurídica do teletrabalho (aqui assumida como sinônimo de trabalho realizado a distância, com a utilização de meios tecnológicos), em nada se distingue daquela de conceito tradicional de que deriva, a forma jurídica do trabalho.
Tecnicamente configurada a relação de trabalho de índole empregatícia, indiferente é à manutenção dessa conformação se o trabalhador presta serviços no estabelecimento do empregador ou longe desse ambiente. Não se define o trabalhador como empregado, portanto, a partir do local em que suas tarefas são desempenhadas.
O que demarca a relação empregatícia, sabe-se, são quatro elementos exaustivamente declamados pela doutrina especializada: pessoalidade, subordinação, onerosidade e não eventualidade. Vale a superficial conceituação:
Pessoalidade: a relação jurídica cumprida deve ser intuitu personae com respeito ao prestador de serviços, que não poderá, assim, fazer-se substituir intermitentemente por outro trabalhador ao longo da concretização dos serviços pactuados.
Subordinação: grosso modo, para os fins que ora interessam, consiste na situação jurídica derivada do contrato de emprego pela qual o empregado compromete-se a acolher, de forma direta ou indireta, o poder de direção do empregador no modo de realização da sua prestação de serviços. É a limitação contratual da autonomia da vontade do trabalhador, que entrega ao seu empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenha.
Onerosidade: o contrato de emprego é bilateral e oneroso, por envolver conjunto diferenciado de prestações e contraprestações recíprocas entre as partes, economicamente mensuráveis.
Não eventualidade: para que haja relação empregatícia é necessário que o trabalho prestado seja permanente (ainda que por curto período), não esporádico.
Então, se o trabalho é desempenhado habitual e pessoalmente por determinado indivíduo, de modo subordinado ao seu tomador e mediante salário, configurada está a relação empregatícia, de forma a pouco importar, insiste-se, se as tarefas diárias em si são desenroladas neste ou naquele lugar.
Tudo confirmado pelo comando do artigo 6º da CLT (com redação dada pela Lei nº 12.551, de 15 de dezembro de 2011):
“Art. 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.” (Original sem destaques).
Mas se juridicamente não se distingue trabalho de teletrabalho, a prática cotidiana coloca cada figura no seu devido lugar. A só circunstância de o labor de temperamento empregatício ser desempenhado no estabelecimento patronal ou em qualquer outro lugar impõe certo distanciamento funcional a essas modalidades de trabalho.
É o que se passa, por exemplo, com a concessão de vale-transporte. Como regra, o empregado que toca o seu dia a dia profissional a partir, também por exemplo, do seu domicílio não recebe vale-transporte do seu empregador. Se não há, nos termos da lei que regula o tema, “deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, não há cogitar-se em atribuição de benefício trabalhista que é útil, justamente, ao ir e vir do trabalhador para o trabalho e do trabalho.
Outros aspectos do trato laboral também sofrem alguma influência a depender do local de prestação dos serviços, mas o mais relevante – e sobre o específico ponto vale alguma reflexão –, é o controle da jornada do empregado que cumpre suas atividades longe da fiscalização direta do empregador.
É ir à procura das respostas a estes questionamentos: está ou não o empregador obrigado a conhecer e controlar a jornada daquele que lhe presta serviços fora do seu estabelecimento? Poderá ter êxito o trabalhador externo que reclamar, por exemplo, o recebimento de alguma importância por eventual sobrejornada (horas extras), ou da supressão de algum intervalo intrajornada? E essas perguntas têm motivação precisa. O inciso I, do artigo 62 da CLT informa que os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho não são abrangidos pelo regime da “duração do trabalho”, comando que se traduz no rompimento da viabilidade fática de se aferir se o empregado que presta serviços nessa condição cumpre jornada regular. É de todo modo irrelevante ao universo justrabralhista, inclusive, se as tarefas foram desempenhadas no período diurno ou noturno, ou se algum intervalo intrajornada ou interjornada é respeitado. Nada disso pode ser estimado pelo empregador em situação que tal.
Assim, se a jornada de trabalho do obreiro que exerce atividade externa não puder ser controlada pelo empregador, este jamais deverá àquele qualquer tipo de remuneração adicional por horas extras, por trabalho noturno ou por tudo o que mais se relacionar com a duração do trabalho. Nesse aspecto, não pagará o empregador por aquilo que lhe é impossível aferir.
Mas que fique claro: a atividade externa deve ser verdadeiramente incompatível com o controle de horário pelo empregador. Do contrário, as regras referentes à duração do trabalho incidem ordinariamente. Insiste-se: sendo o trabalho realizado compatível com o controle de jornada, afastada está a exceção prevista pelo inciso I, do artigo 62 da CLT. Não é suficiente à configuração do desvio da regra geral o mero desejo patronal de não exercer o controle da jornada do preposto que pratica atividade externa. O controle deve ser impossível ao empregador. A jurisprudência especializada é firme nesse sentido. São quatro recentes precedentes:
“HORAS EXTRAORDINÁRIAS. OPERADOR COMERCIAL. TRABALHO EXTERNO. OFENSA AO ARTIGO 62, I, DA CLT NÃO CONFIGURADA. NÃO CONHECIMENTO. No caso, a egrégia Corte Regional, com base na prova testemunhal, concluiu pela impossibilidade de fiscalização efetiva da jornada de trabalho do reclamante, registrando, em sua decisão, os depoimentos pelos quais entendeu nesse sentido. Em razão disso, o Tribunal Regional excluiu a condenação o pagamento de horas extraordinárias. Analisando-se os depoimentos consignados na decisão recorrida, não há, de fato, como se concluir pela possibilidade de controle de jornada, uma vez que não se tem como verificar a efetiva jornada de trabalho do reclamante, o que afasta a alegada ofensa ao artigo 62, I, da CLT.” (TST – 810-31.2013.5.15.0113 – RR – 5ª Turma – Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos – DJ 20/11/2015).
“Atividade externa incompatível com a fixação de horário. Artigo 62, I, da CLT. A utilização de equipamentos eletrônicos, por si só, não representa controle de horário de trabalho, mormente quando se mostra indiferente o horário em que são realizadas as tarefas ou a anotação destas tarefas nos equipamentos eletrônicos que dão ciência ao empregador. Contudo, no caso em análise, entendo que a reclamada não apenas fiscalizava a prestação de serviços do reclamante, mas também, exigia-lhe o cumprimento de horários. Recurso do reclamante que se dá provimento no particular.
(…)
Isto porque, a única testemunha ouvida em audiência confirmou que havia uma reunião matinal, diária, com o supervisor em determinado ponto de encontro, “que o ponto de encontro era em uma padaria perto do estádio do Morumbi” e que “essa reunião tinha que começar pontualmente às 07h”. Acrescenta que o autor cobria férias de outros vendedores, que havia horário previamente estipulado para descarregar o palmtop com os pedidos do dia e que “havia uma avaliação mensal feita pelo supervisor, onde ele acompanha o vendedor em campo” (fls. 234vº).
Ora, se o reclamante deveria se apresentar no ponto de encontro pontualmente às 07h00, todos os dias, e tinha horário pré-fixado para passar os pedidos, após cumprir um roteiro de visitas a clientes que não foi elaborado por ele mesmo – e sim pelos supervisores e/ou substituídos em férias – temos que restou comprovado que o autor não exercia atividade externa incompatível com fixação de horário.
Assim, tendo em vista a ausência dos controles de jornada do reclamante, dou provimento ao apelo, para acolher a jornada alegada na inicial, à exceção do intervalo para refeição e descanso, já que em relação a este, de fato, não havia como a reclamada controlar a pausa de uma hora apenas com a informação dos horários dos pedidos, de modo que, se eventualmente o autor não usufruía da integralidade do intervalo intrajornada, era em razão de seu próprio arbítrio, situação que não gera direito ao recebimento de horas extras. Portanto, deverão ser apuradas as horas extras excedentes da 8ª diária ou 44ª semanal, que serão acrescidas do adicional de 50%, bem como os reflexos postulados, devendo, quanto a estes, ser observada a Orientação Jurisprudencial nº 394 do C. TST.” (TRT/SP – 00002064320125020024 – RO – Ac. 12ªT 20160106324 – Rel. Benedito Valentini – DOE 11/03/2016).
“Jornada externa versus horas extras. Insta frisar que o art. 62, I da CLT traduz presunção relativa de que o trabalho externo não está sujeito a controle de jornada. Que, a jornada extraordinária é devida, tendo em vista o poder que o empregador tem de controlar os horários de seus empregados. Ainda, a alegação de inserção do trabalhador na hipótese do art. 62, I da CLT, deixa a cargo da reclamada a comprovação de suas assertivas. Para que haja o enquadramento do trabalhador na exceção do inciso I do art. 62 da CLT não basta que ele realize “atividades externas”, mas, sim, que efetivamente essas atividades sejam “incompatíveis com a fixação de horário de trabalho”, ou seja, que impossibilite o empregador de controlar a jornada do empregado. E, novamente a prova oral desbanca a tese da defesa, já que demonstra a possibilidade do efetivo controle, inclusive pelo depoimento do seu próprio preposto. Mantenho a condenação.” (TRT/SP – 00002156520135020025 – RO – Ac. 4ªT 20150866164 – Rel. Ivani Contini Bramante – DOE 09/10/2015).
“Esta é uma norma de exceção ao protecionismo que se estende aos empregados em geral e deve ser interpretada restritivamente. A ausência de submissão ao controle de horário está diretamente ligada à situação fática de impossibilidade do efetivo controle. Somente se aplica a exceção legal quando o controle é impossível, e não apenas quando o empregador não deseja fazê-lo.” (TRT/SP – 00002134920145020029 – RO Ac. 6ªT 20150433020 – Rel. Antero Arantes Martins – Julgado em 19/05/2016).
Vê-se, portanto, que é a avaliação da situação e das circunstâncias concretas que definirá a incidência, ou não, dessa regra excetiva.
E não custa lembrar ao leitor que a Consultoria mantida pelo INR segue, como de costume, à disposição dos seus usuários, assinantes do Informativo Notarial e Registral, para auxiliá-los no cotejo das normas trabalhistas (as ligadas ao teletrabalho e quaisquer outras), com a sua realidade cotidiana.
O teletrabalho, que já está inserido no dia a dia de inúmeras atividades, inclusive e em considerável escala no universo notarial e registral, é ferramenta importante ao aumento da produtividade de auxiliares e escreventes, mas deve ser conscientemente manejada por notários e registradores.
Ainda, convém fazer notar que o CNJ editou, há poucos dias, o Provimento nº 55/2016, que dispõe sobre o teletrabalho no âmbito das serventias extrajudiciais. Divulgado por meio do Boletim Eletrônico INR nº 7554, de 22 de junho de 2016, o acanhado provimento, além de autorizar esse tipo de trabalho a notários e registradores e seus prepostos, o que no campo administrativo é medida útil, toma por empréstimo regras que o próprio Conselho Nacional de Justiça editou para regulamentar o mesmo tipo de trabalho nos contornos do Poder Judiciário (Resolução nº 227/2016), isto é, para tratar da relação do estado com seus servidores, quando estes últimos se ativam fora das dependências físicas do primeiro.
Mas não se pode pretender a aplicação paramétrica, não ao menos de forma irrestrita, de normas ligadas ao funcionalismo público à relação privada e celetista (artigo 236 da CF/88 combinado com a redação do artigo 20, caput, da Lei nº 8.935/1994), que é estabelecida entre notários e registradores e seus prepostos.
A Resolução CNJ nº 227/2016, a que regula o teletrabalho no âmbito do Poder Judiciário, dedica todo o seu Capítulo II ao estabelecimento de regras e condições para que os seus servidores atuem em regime de teletrabalho. Boa parte delas, especialmente os dispositivos que tratam da jornada de trabalho, é incompatível com o regime privado e celetista que orienta a relação fixada entre os profissionais a que se refere o artigo 236 da CF/88 e seus prepostos. Determinações incluídas noutros capítulos da resolução também são inconciliáveis com o sistema celetário.
Como seguramente a norma administrativa não exibe potência suficiente para derrogar a CLT, a Lei nº 8.935/1994, tampouco a Constituição Federal, não é recomendável que notários e registradores fiem-se, sem censura, nos comandos administrativos de essência trabalhista que estampam o Provimento CNJ nº 55/2016 e a Resolução de mesma origem nº 227/2016. Dito de outro modo: a aplicação irrestrita da norma administrativa, claro nos aspectos relacionados à relação de emprego, conduzirá o empregador, notário ou registrador, por arriscado caminho. A regulamentação administrativa não servirá de anteparo a eventuais pedidos oferecidos à análise da Justiça do Trabalho. Dirimir-se-á qualquer disceptação trabalhista com suporte nas regras de semelhante natureza, ou seja, com estribo, sobretudo, na disciplina legal da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Autor: Anderson Herance
Advogado, coordenador trabalhista da Consultoria INR e coeditor das Publicações INR